Acordei
tarde, o sol já ia alto. Apercebi-me de que iria precisar de um relógio (de
preferência despertador), pois estava completamente perdida no tempo, sem noção
de horas e sem vontade nenhuma de as ir descobrir. A preguiça era tanta! Se o
meu tutor, o Pedro, me visse, se imaginasse que eu ainda estava na cama,
matava-me! Obrigava-me logo a tomar um duche de água fria e fazer uma vasta
gama de exercícios. Lembro-me de que, por vezes, ele apanhava com o meu mau
humor, tão cómico para ele, e que, quando a minha irmã decidia “aparecer”, ele
ainda não era capaz de se sentir completamente à vontade comigo. Era como se
aquilo o assustasse, como se tivesse medo que lhe fizesse algum mal. De início,
incomodava-me aquela sua atitude pois sentia-me incomodada, tinha medo que ele
me julgasse ou que corresse ao mundo dizendo que eu era uma aberração, mas com
o passar do tempo ele foi-se habituando e eu apurei o meu sentido de humor em
relação a este assunto e entrava na brincadeira: assustava-o, dizia que o ia
amaldiçoar, entre outros. Resultou durante uns tempos, depois ele passou a
conhecer-me melhor e a saber quando eu estava a fingir.
Senti uma
repentina falta do Pedro. Afinal, ele era o único amigo que eu tinha. Em seis
anos, o Pedro foi o meu único companheiro. Era ele que me ajudava em tudo, era
ele que brincava comigo, foi ele que me deu a conhecer o mundo. Era como se
fosse um irmão mais velho. Ai se ele estivesse a ler os meus pensamentos…ficava
tão convencido que nunca mais ninguém o calava e eu nunca mais poderia
resmungar pelas suas exigências porque afinal até gostava da forma de ensino
dele. Ainda bem que a única “anormal” ali era eu!
Ri-me com
esta afirmação. Fitei o quarto com os olhos à procura do meu telemóvel para
consultar as horas. Lá estava ele: em cima da cómoda. Mas porquê ali?! Para
consultar as horas teria de me levantar e de me arrastar praticamente para ver apenas
as horas, só para saber se acordei muito tarde ou se já eram horas de fazer alguma
coisa! Mas ainda não tinha fome, não tinha vontade de sair da cama…para quê
fazer o sacrifício de sair daquele ninho confortável, se o meu corpo não o
exigia?
É claro que
naquela manha, não pensei desta forma, queria era mesmo ficar na cama. E foi o
que fiz!
Pus-me de
barriga para baixo e fiquei a observar através da vidraça o que se passava lá
fora. Devido ao facto da cama ter um orifício que provavelmente teria a ver com
a estética ou com a tendência da altura, era-me permitido observar tudo o que se
passava lá fora, sem que ninguém desse por isso. E foi agradável ser por uns
momentos uma coscuvilheira. Foi divertido poder observar as pessoas que em
tempos me seguiam todos os paços, foi como que uma sensação de poder sobre
elas, como se desta vez não era eu que me devia sentir incomodada mas sim
aquelas pessoas que antes tão me infernizaram a vida e que agora estão mais
velhas, e que não têm nada para observar. Gostei de ser a ‘má da fita’ uma
vez…gostei de ser a verdadeira pessoa má! Porque antes eu poderia ser aos olhos
dos outros um ser abominável, mas na realidade eles é que eram os verdadeiros
maus…eram os outros que faziam mal! Foram os outros que estragaram a infância a
uma menina que era apenas diferente ao protótipo que eles criaram na sua sociedade,
foram eles que me tiraram toda a alegria e vontade de ser eu mesma! Foram eles!
Senti que a
raiva começava a apoderar-se de mim e quando isso acontecia, o meu outro eu
aparecia e revelava-se e isso ia estragar o meu disfarce. Por isso, tentei pensar
rapidamente noutra coisa que me fizesse esquecer aquele assunto. Lembrei-me que
tinha sonhado e que tinha sido um sonho mesmo muito estranho. Tentei lembrar o
máximo daquele pesadelo tão invulgar. Escrevi o que me ia lembrando para não
correr o risco de esquecer também o que me lembrava naquele momento. Tinha que
descobrir o motivo daquele sonho. Tinha de descobrir qual o significado daquele
sonho, qual o motivo da sua existência.
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